segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Eremita




Sinto que a solidão me afaga

como bruxa solerte

que me aprisiona na pequena sala

onde agora habito

Lembro dos dias de glória

o amor das companheiras na alcova

as cândidas risadas

de meus amados filhos

seus passos trôpegos

suas correrias

pela casa assobradada

a sorte de perceber o exercitar 

de suas asas

na imaginação das brincadeiras infantis

Há anos sobrevivo aqui neste sepulcro aberto

como morto vivo

refém das lembranças

fingindo a empáfia do conhecimento

atenuando a solidão com meus livros

única paixão restante de um homem antigo

A vida é madrasta que ensina

com chibata cortante de sonhos perdidos

em alguma noite escura

quando cai a máscara definitiva

persona que se ajusta sob medida

para cada próxima cena

desta peça bufa

que denominamos existência

coisa que se arrasta

entre delírios e desilusões

filme preto e branco de sessão coruja

que se queima na exígua chama

do fogo fátuo que brilha

nas covas noturnas

por fim esclarece-se

desvela a verdadeira face

Desço mais uma vez ao vale das sombras

agora já não temo a escuridão

o final que se avizinha

vão sumindo todos os sentidos

vão morrendo os sentimentos

numa veloz volúpia

que deixa o vivente nesta tonteria/

vertigem das sensações

que por fim cessam

uma a uma

ao penetrar neste ignoto vazio

que absorve a alma

em direção ao nada

que se aprofunda infinito

no mergulho final da consciência

que desliga por fim suas funções

agradecida por não mais existir...